sexta-feira, 22 de julho de 2011

ESTOJO DE PINTURA



ACRÍLICO S/TELA
ESTOJO DE PINTURA
ALEX ROCHA

O Baú tinha uma textura fria, era de uma madeira pesada, escura e antiga. Não sabia como ele fora parar ali, no seu quarto. Como uma peça tão antiquada e estranha a tudo mais que o cercava fora parar ali? Seria a gravidade, a atração dos iguais? Não lembra vê-lo em outro lugar da casa, esse Baú nascera junto com ele e com o quarto, tornando-se natural e inquestionável. Nunca fizera mesmo a pergunta do como e porque ele estava ali. Se ele pudesse recordar, era sobre esse bloco que punha seus pés moles de menino para ver o Quintal. O Baú ficava bem ali, no lado esquerdo da janela. Os músculos de seus braços se enrijeceram empurrando-o mais para a direita, mais a baixo da janela; ele pisava o seu casco sem dó a fim de ver no Quintal o espetáculo das galinhas ciscando e cantando suas glossolalias, a terra rubra e as pedras cheia de grandes segredos, prestes a saltarem para suas mãos pequenas demais para eles. Era ali, no terreiro, o deserto onde gerava a civilização de suas fantasias, e com seus sonhos amolecia e entortava os metais de suas cidadelas, feitas de pecinhas furtadas da Sucata.

O Baú era o degrau que o elevava até o seu Universo. Atravessava a janela e fugia da gaiola de cimento, cujos artefatos não podia tocar sem enfrentar censuras; fugia da gaiola e renascia deus, artesão do lixo e das escórias repudiadas pelo Lar. O Quintal era o Éden de um imperador que não se entristecia com a solidão, era bom que estivesse só!, em seu lugar de inocência e de ausência de juízos, onde sua força girava livre em jogos, e os gestos podiam alçar os maiores vôos; nada poderia ferir os balões de idéias com que esses gestos planavam soltos, e também as idéias pegavam caronas nesses gestos flutuantes. O Baú, perna postiça com qual se agigantava e se esbanjava no terreiro. E os cacarejos das galinhas subiam como adorações e salmos ao senhor das pedras, o deus da terra e dos metais. Depois, o deus voltava ao seu pudor de menino, e só por pudor entrava de novo na gaiola. Era preciso esconder esse Baú no lado esquerdo da janela; era preciso esconder o seu segredo, ninguém poderia saber que ele era a ponte para o seu Éden! O enigma do Baú estava gravado em sua pele espessa e dura; seu lombo foi marcado muitas vezes com o barro rubro nos seus dedos do menino. Quando suas pernas, sozinhas, já bastavam como pontes, e o menino podia num golpe de vista alcançar os limites do seu reino, o Baú repousou para sempre em seu sono. Nunca mais foi despertado, ficando inerte no lado esquerdo da janela. E os enigmas inscritos em sua pele fugiram todos para o seu íntimo: nele Anselmo começou a guardar seus primeiros desenhos, seus rabiscos, suas anotações. Guardou também nele o livro do Peixe Blindado.


Al Duarte, do livro inacabado Um Peixe Blindado

2 comentários: