CACHORRO
Grafite sobre Canson
Alex Rocha
Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as
peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono
desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado
da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido
com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do
curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o
animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns
passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A
carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se
pôs a latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, sinha Vitória pegou-se à Virgem
Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no
quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna,
meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés.
Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro
das cabras. Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem
destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E,
perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com
dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro,
mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma
barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava
as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos
colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.
Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se,
endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou
deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, agarrando-se nos
seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos
jogavam cobras mortas.
Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as
pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e
desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam
diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis. (…)
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com
certeza o sol desaparecera.
Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o
fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de
noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as
ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas
Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia
que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno
coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros
de suçuarana
deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os
meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinha Vitória guardava o
cachimbo. (…)
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo
cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças
se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme.
O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.
Trecho do Livros "Vidas Secas" de Graciliano Ramos